domingo, 22 de dezembro de 2013

A Taça

Quando a taça caía ao chão, se quebrando em mil pedaços e esparramando água pelo ar, Abel acordava. Todos os dias era assim, Abel abria os olhos em sua cama, e era obrigado a reviver os mesmos eventos. O jovem sabia que estava sonhando, mas não podia impedir a si mesmo de passar por tudo de novo.


O garoto se levanta, vai ao banheiro, troca de roupa. Desce para a cozinha e toma seu café da manhã, enquanto sua mãe lhe dá as mesmas broncas sobre dormir tarde, não fazer o dever de casa, andar com amigos estranhos. Ela infelizmente é professora na mesma escola que ele estuda e sabe com quem ele anda e sobre os deveres não feitos de outras matérias. Enquanto arruma a cozinha, ela não responde suas perguntas nem conversa com ele. Apenas repete a mesma conversa de maneira programada.


Abel sai de casa com sua mochila nas costas. Sua mãe não dará aula cedo, e avisou-lhe que iria mais tarde. Os mesmos carros passam na rua, nos mesmos horários. As mesmas pessoas levam seus cachorros para passear, carregam pão, levam seus filhos para a escola. Os mesmos pássaros voam.


Um velho atravessa lentamente a rua com sua bengala, enquanto o semáforo está fechado para os carros. Ao chegar no meio do caminho, o farol se abre, e os motoristas mais apressados começam a buzinar para ele. O senhor tenta acelerar o passo, mas acaba por cair ao chão, irritando ainda mais os motoristas. Abel corre para ajudá-lo, e o idoso lhe agradece a generosidade com um sorriso no rosto.


Abel chega finalmente à escola. Assiste as mesmas aulas de matemática e geografia, com todos os seus colegas nas mesmas posições, e professores fazendo os mesmos movimentos explanatórios. Toca o sinal do intervalo. Abel senta-se ao lado de alguns amigos para comer seu lanche. Ouve-os falarem sobre as mesmas coisas, conversando com ele como se ele estivesse respondendo.


No momento em que seu amigo ri de seu cabelo bagunçado, Abel fecha os olhos, sabendo o que está para acontecer. Ouve o som de tiros sendo disparados. Apenas três, mas parece ter sido mais para Abel. O som veio da direção da sala dos professores.


Abel abre os olhos e vê a multidão correndo para longe do perigo. Levanta-se, e anda no sentido oposto ao da multidão, recebendo empurrões e trombadas. Precisava saber se sua mãe estava bem. Mas ao parar em frente à porta da sala dos professores, Abel a vê caída ao chão, envolta por uma poça de sangue. Os demais professores estão encolhidos em um canto, ameaçados pelo atirador.


- Pai! - Abel se vê gritando.


O homem com a arma na mão se vira para ele. Abel vê nele o rosto de seu pai. Sente a adrenalina sendo liberada em seu corpo, devido ao medo que o domina por completo. Seus olhos se fecham, e Abel acorda em sua cama com o barulho do vidro se quebrando. E começa novamente aquilo que ele chama de “dia”.


Abel procurou várias formas de subverter a realidade do pesadelo. Tentou permanecer na cama, fazer caminhos diferentes para a escola, seguir os alunos que fugiam de medo... mas logo em seguida, Abel sempre aparecia, de repente, onde ele precisava estar. Se tentava ficar na cama, depois de algum tempo se via na cozinha tomando café. Se demorava intencionalmente para chegar a escola, em um instante estava na sala de aula. Ao tentar fazer caminhos diferentes, conseguia apenas chegar até um certo ponto, onde as ruas e as pessoas começavam a ficar turvos, até tornarem-se borrões. Se tentasse ultrapassar esse limite, se via de volta no caminho original. Após muitas tentativas, Abel estava cansado e entediado.


Decidiu mais uma vez ficar na cama, até o momento em que estava na cozinha. Sua mãe já havia passado pelo assunto dos videogames, e agora estava reclamando de suas amizades. Abel saberia que dentro de algumas horas estaria vendo seu corpo ao chão novamente. Pela milésima vez, tentou racionalizar uma forma de sair do sonho, de não ter que ver sua mãe morrer, de sair dessa prisão em que se encontrava.


No meio desses pensamentos, Abel ouviu por acaso a palavra “pai” sair da boca de sua mãe. Não havia reparado nisso antes. Sua mãe citava algo sobre seu pai durante aquele período na cozinha, e ele nunca percebera. Tentou inutilmente falar com ela sobre isso, mas ela não reagiu.


Durante aquele dia, Abel reparou em algumas diferenças sutis em seu sonho. Não se lembrava de quando esses pesadelos haviam começado, mas se lembrava de que há muitos dias atrás, o velho, ao ser ajudado, não sorria para ele. Em dias anteriores, havia menos pássaros cantando. As ruas que ele cruzava tinham menor visibilidade, a parte turva agora começava mais longe... Como se o pesadelo estivesse evoluindo.


No dia seguinte, prestou mais atenção ao que sua mãe dizia. Ela lhe dissera que seu pai havia ligado para ela e a encontraria na escola hoje para entregar um presente. Ela achava que tinha a ver com a decisão judicial, e que ele estava tentando convencê-la a voltar atrás. E então mudou de assunto, para falar das notas baixas de Abel.


Estava ali. Bem na sua frente, ele só não havia prestado atenção. Abel passou os próximos dias procurando pistas que o levassem a sair desse ciclo infinito. Em seu quarto, somente descobriu uma ligação perdida do seu pai em seu celular. Não foi exatamente perdida, lembrou-se de ter ignorado a ligação, porque não queria falar com ele.


Na cozinha, começou a escutar atentamente tudo o que a mãe lhe falava. Além do que já lembrava, descobriu que sua mãe havia citado uma reunião durante o almoço, onde ela perguntaria aos outros professores como Abel estava indo nas aulas. Falou também sobre a tia Gê, que viria para a cidade na próxima semana. Tentava juntar todas essas peças, mas não sabia exatamente o que estava procurando.


No caminho para a escola, passou a ficar atento ao que poderia estar diferente. Algumas pessoas a mais, algumas buzinas que nunca tinha ouvido. Chegava ao semáforo, onde o velhinho atravessava em meio às buzinas. Corria para ajudá-lo, mas agora percebia algo diferente. Uma das buzinas parava de tocar no instante em que ele se aproximava do senhor. Olhava para o carro bem à sua frente, cuja buzina parara, mas a visão do motorista estava borrada. Alguma coisa no carro lhe era familiar.


Na escola, passava as aulas olhando pela janela, para ver se lembrava de alguma coisa nova. Por ela passavam apenas borrões e vultos irreconhecíveis. Achou que um desses borrões era sua mãe chegando à escola, mas não tinha certeza. Quando dava a hora do lanche, ficava sentado ao lado de seus amigos, olhando a movimentação dos corredores, uma vez que não tinha visualização direta da sala de professores. Fazia o que podia, ficando atento ao corredor que ia naquela direção. Via uma faxineira indo para lá, com panos e produtos na mão, e em seguida, vários professores se encaminhando para o mesmo local. Não via sua mãe, nem seu pai. Pouco tempo depois, ouvia os tiros, e via pessoas correndo.


Ao chegar na frente da sala de professores, onde sua mãe jazia morta, tentava controlar as emoções, e analisar o que estava acontecendo. Sua mãe continuava morta, com um buraco de tiro na cabeça e outros dois no corpo. Os professores estavam ao fundo da sala, e reparou que um deles apertava discretamente botões em seu celular. Ouvia-se gritando para seu pai, que se virava para ele, esbarrando em… Alguma coisa… Abel estava tendo alguma dificuldade para lembrar essa parte.


Levantou da cama esgotado de possibilidades. Não havia mais onde procurar, e por vários dias já revirara o sonho inteiro em busca de pistas. Alguma coisa ainda faltava, muitas perguntas estavam sem resposta. Desceu para a cozinha, e ficou encarando o café na sua frente. Reparou em uma pequena falha na xícara de porcelana, e passou o dedo por ela, sentindo a região áspera em contraste com a borda lisa. A xícara de repente não estava mais ali. Viu sua mãe levá-la para a pia, onde foi despejada em meio a copos e pratos sujos.


O barulho desse encontro ressoou na cabeça de Abel. O jovem estudante arregalou os olhos enquanto o som crescia e tomava forma. Levantou-se da mesa, e andou de um lado para o outro. Pouco tempo depois, apareceu no caminho para a escola. Tentou correr para chegar mais cedo, mas ao chegar lá, se viu de volta ao meio do caminho. Apesar da pressa para confirmar sua suspeita, teve que suportar as aulas e o intervalo pacientemente.


Seu amigo riu do seu cabelo. Ouviu os tiros. Encaminhou-se para a sala dos professores. Lá estava sua mãe caída ao chão, e seu pai apontando a arma para os demais.


- Pai!


O medo demorou um pouco mais para tomar conta dessa vez. Seu pai se virou, com a arma em mãos, e Abel pôde vê-lo esbarrando em uma taça cheia de água que estava em cima da mesa. A taça caiu ao chão, se quebrando em mil pedaços e esparramando água pelo ar.
Abel abriu os olhos em sua cama, agora sabendo exatamente o que havia acontecido. Levantou-se, arrumou-se, foi para a cozinha. Enquanto sua mãe falava, não tirava os olhos dela. Sua expressão era irritada, mas Abel também percebeu um pingo de preocupação. No fundo, ela só queria o melhor para ele. Em um momento de silêncio, em que ela foi lavar alguns pratos, ele chegou até ela e disse:


- Me perdoe, mãe. Gostaria de ter sido um filho melhor pra você. Eu te amo. - deu um beijo em sua face, mas ao tocá-la, se viu novamente na mesa.


No caminho para a escola, se aproximou do velhinho, e ajudou-o a se levantar. Virou-se para o borrão daquele carro familiar, e o encarou por algum tempo, antes de dizer:


- Você colheu o que você plantou, pai. Mas apesar de tudo o que você fez, eu… Eu não consigo evitar te amar, e um dia… Bom, eu vou tentar te perdoar um dia. Adeus... - Se viu chegando à escola.


Durante as aulas e o intervalo ficou paralisado, olhando para o horizonte, tentando segurar a ansiedade. Quando ouviu os tiros, andou lentamente para a porta da sala dos professores, atravessando a multidão. Não estava com medo, não mais. Viu sua mãe morta, e caíram lágrimas de seus olhos. Talvez fosse a última vez que a veria.


- Pai!


Seu pai se virou com a arma em mãos, e derrubou a taça de vidro. Abel deu um passo à frente, depois outro. Entrou enfim na sala dos professores, com seu pai lhe apontando a arma. Abel ouviu então outro tiro, e percebeu que fora atingido no estômago. Caiu de costas, e viu seu pai ajoelhado ao seu lado, se preparando para lhe dar o tiro fatal na cabeça. Mas não conseguiu apertar o gatilho. Abel alcançou a haste da taça quebrada, e a enfiou no pescoço de seu pai, que caiu ao chão e começou a sufocar em seu próprio sangue. Pouco tempo depois, parou de se mexer. Pai, mãe e filho estavam agora deitados na mesma poça de sangue. Abel usou o resto de energia que possuía para soltar um último gemido de dor, e enfim desfaleceu.


Abriu os olhos, ao ouvir o barulho de vidro quebrando. Mas não estava em seu quarto. Viu-se em uma cama de hospital, com diversos aparelhos conectados a seu corpo. Viu no chão ao lado da cama estilhaços de um copo quebrado. Virou a cabeça com dificuldade para o outro lado. Havia uma pessoa na porta, que não pôde ver direito com sua visão turva. Percebeu que ela estava gritando com alguém.

Pouco tempo depois, um médico entrou no quarto. Junto com ele veio a mulher que estava na porta, que Abel reconheceu como a tia Gê. Ela começou a falar com ele, com o sorriso de quem presenciou um milagre, enquanto o médico lhe tocava com o estetoscópio. Abel gostaria de estar feliz… mas sabia que na verdade acabara de entrar em outro pesadelo, um pesadelo onde sua mãe estava morta e ele havia matado seu próprio pai.

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Nota do autor:
Este conto foi escrito para o 1º Desafio Literário Revista Pacheco, que selecionou textos do gênero “Terror” e tema “Pesadelo”. O conto é parte integrante de um e-book publicado pelo site, que está disponível gratuitamente para download em http://revistapacheco.blogspot.com.br.


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Este conto também está publicado em:
Revista Pacheco

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