domingo, 29 de setembro de 2013

Vestibulência

Seus pensamentos decolaram em subjetividades e suas pálpebras pesaram, cobrindo lentamente seus olhos. Seu corpo lhe permitiu receber aquele lote especial de endorfina, que só ganha quem finalmente pode dormir após muito tempo acordado. O relaxamento fez com que sua cabeça cedesse à gravidade, e se inclinasse abruptamente para frente. A queda o assustou, e não pôde chegar ao sono completo.

Levou alguns segundos para recuperar a consciência de onde estava e porque estava ali. E ao fazê-lo, preocupou-se pelo que acabara de acontecer. Não poderia dormir! Não somente não tinha permissão para isso, como isso poderia custar-lhe uma vaga na faculdade. Essa prova era muito importante. Ajeitou-se em postura ereta e tamborilou um ritmo em sua perna para espantar a sonolência.

Os demais candidatos estavam concentrados, bem mais do que ele. Concentração era importante, e poderia ser decisiva. No que ele estava pensando? Deveria ter dormido mais na noite anterior. Agora estava nessa situação, lutando para se manter em funcionamento. Mas não se deixaria vencer. Pessoas estavam contando com ele, então seria responsável e não dormiria. Situações assim separam homens de meninos! E ele era um homem! Agora era a hora da verdade. Pessoas estavam contando com ele… Não podia dormir… Seria responsável... Não podia dormir… E aquela bruxa... Lhe queimaria vivo se ele dormisse… Sem falar nos Napoleões... voadores...

Acordou assustado novamente. Entrou em desespero. Olhou para os lados, batucou ainda mais forte em sua perna, bocejou, bebeu um gole de sua garrafa d’água, massageou a testa. Quando conseguiu algum controle sobre si mesmo, reparou que todas as coisas naquela sala estavam colaborando para que ele desfalecesse. O barulho do ventilador, os sons abafados de pessoas conversando no lado de fora, o nível de gás carbônico no ar, o silêncio das pessoas ali dentro, o som dos lápis e canetas riscando os papéis nas mesas ao redor, e, claro, não ter dormido direito na noite anterior.

Precisava fazer alguma coisa. Havia um homem parado a alguns metros, uma espécie de monitor. Chamou-o e perguntou se eles poderiam trazer-lhe um pouco de café. Era permitido, de acordo com o regulamento do vestibular, mas não era usual alguém realmente efetuar a solicitação. O homem lançou-lhe um olhar profundo e desagradável.

- Aguarde um instante.

Alguns animais devem ter evoluído para espécies novas enquanto ele esperava esse pequeno “instante”. Estava quase cedendo ao sono mais uma vez, quando viu o monitor voltando, com um copo de plástico na mão. Agradeceu aos céus, e aguardou ansiosamente até que o monitor chegou em sua mesa. Já podia pressentir o cheiro do café adentrando suas narinas e dando-lhe um novo ânimo para concluir a prova em tempo recorde, quando foi colocado em sua frente um copo de plástico cheio de chá sabor maracujá.

- Estamos sem café. Isso terá que bastar.

Encarou o chá, enquanto o monitor se retirava junto com suas esperanças. Quando a Lei do Resfriamento de Newton terminou de fazer seu trabalho no líquido, parou de encará-lo e deu finalmente um gole. Não estava nada agradável. O desespero se metamorfoseou em raiva, o que o motivou a tentar de todas as maneiras possíveis continuar consciente.

Primeiro, beliscou-se, em várias partes do corpo. Só parou quando ficou bem dolorido. Em seguida, espreguiçou-se, estalou o pescoço, os dedos da mão e mais algumas articulações, tomou quase todo o resto da garrafa de água de uma vez. Batucou na mesa alternando os dedos em progressão geométrica. Cantou uma música em voz muda. Ainda não era suficiente. Discretamente, puxou com uma das mãos o próprio cabelo, teorizando que isso poderia estimular o sangue a correr para o cérebro. Quando percebeu que era inútil, passou a inventar e resolver puzzles mentais. Nada funcionava. Após 23 tentativas frustradas de se manter acordado, perguntou-se se essa oportunidade que estava em suas mãos valia a pena.

E naquele momento concluiu que não. Estava com sono, estressado, com o corpo dolorido, e com gosto de maracujá artificial na boca. Não tinha pressa de se formar, nem fazia questão de que fosse em uma faculdade pública. Não queria permanecer ao lado da manada de estudantes correndo para a faculdade e, principalmente, não estava disposto a sacrificar nem mais um milisegundo de sua felicidade dentro daquele poliedro de cimento. Estava decidido.

Calmamente, levantou-se de seu assento e encarou os demais candidatos. Alguns rostos se viraram para ele, cedendo à dúvida. Limpou a garganta, como quem se prepara para um discurso, virou-se para os outros e pronunciou, com um tom até mesmo um tanto epopéico, as seguintes palavras:

- Caros bucéfalos anácronos. Todos vós sois uns idiotas! Apedeutas engomados, que acreditais ser melhores do que outrem. Fadigam-se em estudo, para depois fadigarem-se em trabalho. Recebais aqui o meu mais sincero ansejo: que pegueis vossos estimados diplomas, e os introduzais filosoficamente bem no epicentro de vossos… - sentiu um braço lhe tocar.

Era um segurança. Puxou o braço de volta e correu, passando em movimento uniformemente acelerado por candidatos furiosos que tentavam impedí-lo de sair da sala. Mais seguranças brotaram à frente, fazendo-o perceber o fim iminente. Ainda assim, não se rendeu. Gritou, esperneou, e se contorceu enquanto era carregado pelos corredores. Berrou a famosa frase de Rui Barbosa: “Maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado!”, e alguns pedaços de discurso do Martin Luther King Jr. Ao ver que estavam perto da saída, blasfemou contra a mãe de todo mundo, bateu e apanhou tanto quanto pôde, até que foi enfim arremessado porta afora, batendo a cabeça com força na calçada.

Acordou assustado. Estava sentado em sua mesa, os candidatos continuavam concentrados fazendo suas provas, e o monitor estava parado em sua posição. O copo de chá ainda estava ali, mas vazio. Olhou para o relógio na parede. Faltava apenas 40 minutos para o término da prova. Analisou as questões, e viu que não estava nem na metade. Esfregou os olhos, tomou um último gole de água, e atirou-se a calcular a área de um círculo interno a um triângulo.


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