Uma fuga acontecia em meio à cidade grande. Aquele bairro, próximo ao centro da cidade, estava silencioso o suficiente para que fosse possível alguém acordar com o som das pisadas. Não demoraria muito para amanhecer.
O perseguido: um menino de uns 15 anos apelidado Juba. O que era de certo modo irônico, agora que estava careca devido à quimioterapia. Juba descobrira há alguns meses a existência do câncer na traquéia, e estava tratando-o para tentar uma cirurgia posterior. Juba gosta de basquete, literatura e coleciona tampinhas de garrafas, por influência de um personagem na TV que as colecionava também.
O perseguidor: uma incógnita. Devia ter uns 2 metros de altura, e estava de capuz, impedindo a visualização de seu rosto. Corria com as mãos no bolso de sua blusa, e parecia não ter dificuldade em acompanhar a corrida do rapaz.
O menino virou várias esquinas tentando despistá-lo, achando que fosse ser sequestrado e ter seus órgãos arrancados para serem vendidos. As ruas estavam vazias, e pouco iluminadas, o que aumentava ainda mais sua ansiedade. Juba correu até que suas pernas falharam, levando-o ao asfalto. O perseguidor se aproximou.
- O que você quer? Já disse que não tenho dinheiro! Por quê você está me seguindo? - Juba se arrastava para trás, já num esforço inútil de fugir de seu destino.
Depois de um longo período de silêncio, uma voz assustadoramente grave saiu daquela figura em pé.
- Não desejo seu dinheiro.
O homem estendeu a mão na direção de Juba. Juba conseguiu ver nesse momento dois olhos brancos brilhantes embaixo do capuz. A mão do ser também brilhou, num tom azul. Estava já completamente congelado de medo, quando sentiu seu corpo se contorcer e esticar. Cada nervo de seu corpo lhe emitia sinais de dor, e não conseguia mais enxergar, ouvir ou falar. Era apenas ele e aquela sensação aguda de que seria desintegrado.
Acordou no hospital, com seus familiares em volta. Mas estava com o pensamento tão lento, que para ele foi como se os dois dias que esteve no hospital tivessem se passado em poucos minutos. Não se lembrava de nada do que qualquer pessoa lhe disse nesse tempo. Quando finalmente conseguiu se levantar, Juba estava bem mais do que recuperado. Foi informado que seu câncer desaparecera completamente. Os sinais de asma que possuía desde criança também já não existiam. Ao reparar que sua visão estava turva, tirou as lentes de contato, e percebeu que não precisava delas para enxergar bem. O que quer que aquela coisa tenha feito com ele, agora ele estava livre de qualquer tipo de doença.
Juba não gostava de dever para as pessoas, e durante as próximas semanas, isso foi a primeira coisa que o incomodou. Ele não pediu para ser curado. Quem era aquele homem para se meter de graça em sua vida? Voltou várias vezes ao local onde o encontrara, mas não o viu novamente. Depois de um tempo, começou a ter sonhos com o homem, onde ele tirava o capuz e era um extraterrestre, depois um anjo, depois um bruxo, depois um demônio. Mas na realidade, não sabia o que ele era, apenas que o curara.
Três meses depois do ocorrido, Juba estava oficialmente em depressão. Inconscientemente, ele achava que as doenças que ele tinha eram uma forma de justiça para as coisas ruins que ele já fez na vida. Ele não merecia ter sido curado, ele tinha que ser punido pelo passado se ele quisesse ser feliz no futuro. Juba parou de ir para a escola, e ficava dias e dias enclausurado no quarto, sem vontade de viver.
Essa situação perdurou por mais três meses, até que Juba estava no limite da deterioração. Navegava uma noite na internet, sem quase manifestar expressão alguma ao ler os comentários de seus amigos, quando toda a energia elétrica no quarto cessou. A única luz que Juba pôde enxergar foi a luz que entrava pela janela. Há quanto tempo não olhava praquele buraco em sua parede! Juba abriu as cortinas e se permitiu admirar as luzes da cidade, os prédios vizinhos, e os carros na rua… a cidade vista de cima era mais bela do que se lembrava. A contemplação durou pouco, pois Juba percebeu que aquele sentimento cotidiano de solidão havia sumido. Havia mais alguém em seu quarto. Ao virar-se, viu que todo o cômodo estava refletindo uma tonalidade azulada, e ali, a poucos metros, o encapuzado o encarava com seus olhos brilhantes.
- Você me roubou, seu maldito! Me devolva o que você roubou de mim! - Juba berrava sem se importar se o mundo inteiro o ouviria. A voz grave do encapuzado, por outro lado, continuava grave e calma.
- Não lhe roubei, nem lhe cobrei nada. O que recebeu, isso foi de graça.
- Eu não pedi pra receber nada! Eu não quero nada de você! - Tentou socá-lo, mas ele não estava mais ali, e Juba acabou por acertar em cheio uma estante de livros que estava logo atrás, derrubando-a junto com seu conteúdo.
A figura reaparecera atrás dele, e quando Juba se virou e a viu, começou a gritar:
- Me devolva! Me devolva!
- O que quer que eu te devolva?
- A minha morte! Você roubou a minha morte! - de maneira impulsiva, voltou a correr para atacá-lo, mas novamente ele não estava mais ali. Ali só estava a velha janela de madeira aberta, cuja cortina dançava com o vento.
No dia seguinte os principais jornais noticiaram como, após meses de depressão, um garoto que vencera o câncer se jogou do prédio onde morava.
_____________
Este conto também está publicado em:O Nerd Escritor
Roda de Escritores
WattPad
Nenhum comentário:
Postar um comentário