quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Alex


Se eu soubesse que essa bodega encheria de viados, não teria vindo. Não quero paquerar, mas também não quero ficar vendo homem se pegando com homem. Tenho vontade de falar isso em voz alta, mas não sou tão burro. Meu pai era abertamente racista e quase foi preso. Hoje em dia falar de gay é o mesmo que falar de negro naquela época, não podemos mais ter nossa própria opinião. Só decidi continuar aqui porque também não estou vendo nenhuma mulher por perto.
O próprio garçom à minha frente parece meio afetado. Ele lava os copos com delicadeza, e fala com os clientes sorrindo e quebrando os pulsos. Tudo bem, desde que ele não venha falar comigo.
– Já foi atendido?
O que eu fiz pra merecer isso? Tantos garçons machos nesse lugar...
– Ainda não. Me traz uma cerveja, por favor.
Em instantes ele trouxe a minha cerveja, e eu a bebi evitando olhar para a sodomia que acontecia na pista de dança atrás de mim. Só não deu pra fugir da música, um sertanejo universitário feito por uns poucos versos que se resumem a “quero transar com você”.
Alguém sentou ao meu lado. Um homem também em meia idade. O garçom afetado o atendeu, ele pediu uma dose de vodca. Então se virou em minha direção e tentou puxar assunto.
– Está aqui sozinho, querido?
Querido? Puta que me pariu.
– Estou. E devo lhe informar que não sou baitola.
– Eu não disse que você é. Então você gosta de mulheres?
– Não… Não no momento.
– Interessante… Qual é o seu nome, homem estranho que não é gay e também não gosta de mulheres?
– Alfredo.
– Prazer. Me chame de Alex.
Não estendi minha mão para cumprimentá-lo. Ao invés disso, virei para um garçom macho que estava passando por ali, e pedi outra cerveja. O imbecil, ao invés de me servir, chamou o afeminado para me trazer o pedido. E o tal do Alex voltou a falar comigo.
– Você está fazendo algum tipo de promessa, Alfredo? Vai virar padre?
Todo castigo pra corno é pouco mesmo. Imaginei que se eu aceitasse falar honestamente com ele, a conversa terminaria mais rápido.
– Mais ou menos. Rezei para meu santo, e pedi que eu não conhecesse nem gostasse de outras mulheres até que aparecesse uma decente e confiável.
– Outras? Então você era comprometido.
– Meu casamento terminou faz pouco tempo.
Aquele viado fazendo perguntas pessoais estava me perturbando. Não queria conversar com ele, não queria ouvir sertanejo, não queria estar ali. Mas nós brasileiros temos a mania de aceitar uma situação ruim com medo de se mexer e ela ficar pior. E foi isso que eu fiz, fiquei lá na bodega do inferno conversando com a bicha.
Ele continuou fazendo perguntas e eu apenas respondia sem puxar assunto. Ou ele era muito burro pra não perceber minha falta de vontade, ou muito insistente apesar dela. Alex não era de todo desinteressante, eu até estaria gostando da conversa, se ele não fosse boiola.
– Fale-me mais sobre sua ex-mulher. O que fez vocês se divorciarem?
Encarei-o com minha melhor expressão de “isso está passando dos limites”, mas ele não parece ter percebido, ou se importado. Minha teoria sobre continuar a conversa pra ela terminar mais rápido estava indo por água abaixo.
– Não quero falar ni...
– Ah, não seja chatonildo! Vamos fazer assim: você me conta sobre sua ex-mulher, e eu paro de te incomodar. Vou embora, e talvez você nunca mais me veja.
– Está bem. Combinado.
Era um acordo bom, e a primeira coisa sensata a sair da boca dele. Antes de falar, pedi uma dose de pinga, e a bebi de uma vez.
– Estive casado por quinze anos. Tenho uma filha de onze. Ano passado minha esposa começou a agir de maneira estranha, dizendo que nunca havia parado pra pensar em si mesma e nos seus próprios desejos, e mais um monte de outras baboseiras. Então, há dois meses atrás, ela me confessou que estava me traindo com outra mulher. Minha esposa era uma sapatona de merda, e disse que nunca havia se sentido daquela maneira por ninguém, nem mesmo por mim. Ela se mudou do país com a namorada, e minha filha decidiu que queria ir junto pra conhecer o mundo. E essa é minha ótima história, de um corno que foi abandonado pela família.
Alex me encarou.
– Agora você vai embora?
Ao invés de ir embora, Alex me abraçou. E só então me dei conta de que estava lacrimejando que nem um maricas. Abracei-o de volta, e me deixei chorar. O perfume que ele usava lembrava um pouco o de minha esposa. Então ele fez o impensável. Me beijou na boca.
Não tive tempo de reagir, e senti muitas coisas ao mesmo tempo enquanto o beijava: ódio, alegria, nojo, tesão. Quando paramos de nos beijar e eu abri os olhos, Alex era mulher. Negra, meia idade, cabelos enrolados até o ombro.
– O que… O que está acontecendo?
– Do que está falando? Foi só um beijo.
Olhei em volta. O salão, que antes estava cheio de homens, agora tinha homens e mulheres, dançando juntos fazendo passos de cowboy na pista. Um casal que antes era de dois homens agora era de duas mulheres. Alguns amigos viraram algumas amigas, dois garçons que andavam pelo balcão também eram mulheres. O garçom que me atendia continuou sendo um menino afeminado. E Alex era mulher, mas só depois de eu a ter beijado. Não poderia me esconder do fato de que eu a havia beijado sabendo, ou acreditando, que era um homem.
Me lembrei do pedido que eu havia feito ao meu santo. Ou eu precisaria ir a um psico-qualquer-coisa, ou eu não sabia que a reza seria levada tão ao pé da letra. Alex tentava falar comigo, mas eu não estava ouvindo.
– Alfredo, você está bem? Você parecia em outra dimensão.
Puxei-a para perto de mim, e dessa vez eu a beijei.
– Estou bem. Só falamos de mim até agora, fale mais sobre você, Alex.
Passamos o resto da noite conversando. O sertanejo não parecia mais tão ruim, os casais héteros e gays se pegando não era mais algo incômodo. O fim do meu casamento agora se parecia menos com uma traição e mais como algo inevitável que eu não era capaz de enxergar. Pela primeira vez desde então, fiquei feliz por minha ex-mulher estar feliz.
E Alex parecia cada vez mais interessante.

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Este conto foi escrito para o desafio #Escreva2016, sob o mote "Um Novo Começo"
Para conhecer mais, clique aqui.

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